Contar histórias (e ouvir) tem origem milenar, da tradição oral.
Naquele
tempo, quando ainda não existia nem lápis e nem papel, o contador de histórias
precisava ter uma boa memória para ser o depositário da herança cultural dos
seus antepassados e depois reproduzir as suas raízes culturais aos
descendentes.
Era
a tradição oral.
Na
historia de Israel, coube a tribo dos Levitas a tarefa de preservar a tradição
do povo. Ouviam e contavam histórias entre as tribos. Viajavam muito e, das
doze tribos, foi a única que não recebeu a terra, na tradição judaica
daquela época, considerada uma herança de Deus.
A
tribo dos Levitas recebeu uma missão maior, que era levar a tradição sagrada do
povo, montar e conduzir o tabernáculo, tanto no período harmônico e feliz no
tempo do regime tribal, como no período da escravidão e na longa caminhada pelo
deserto em direção da terra prometida.
As narrativas tradicionais expressam em imagens as
verdades mais profundas da vida. Daí serem eternas.
Era uma vez... Histórias de heróis... Numa terra muito
distante..., Santos, príncipes e princesas, bruxas e dragões mexem com a
fantasia, com os sonhos e ajudam crianças e adultos a superarem, com
simplicidade e beleza os conflitos pessoais e interpessoais.
Certa
feita eu estava contando histórias para um grupo de crianças e seus pais.
Para descontrair e começar a minha fala, perguntei
se alguém já conhecia a história “O patinho feio”, de autoria do
dinamarquês Hans Christian Andersen, uma das histórias mais conhecidas de
todos os públicos, crianças, jovens e adultos. A resposta foi afirmativa
e unânime.
Então pedi que cada um contasse uma pouco da história
para exercitar a memória e a arte de contar histórias. Eu era o ouvinte e o grupo
inteiro contava uma história para mim.
Percebi que uma menina, que tinha levantado a sua mão com
muito entusiasmo para sinalizar que conhecia a famosa história. Mas, ao chegar
a sua vez de falar, silenciou de tal forma que chamou a minha atenção. Ela ficou
calada até o final da história.
Sabemos que o conto de Andersen – o patinho feio –
trabalha o psicológico da rejeição do diferente. Mas, às vezes, ser diferente
(o personagem da história era um cisne, não um pato como todos
pensavam inicialmente) pode revelar-se como uma vantagem, na beleza e na
elegância de um cisne, como na história.
Finalizamos o encontro resumindo, na conclusão do grupo:
Quando somos julgados pelas aparências, e em muitas
vezes isso ocorre de forma silenciosa, nos sentimos discriminados, rejeitados.
O mesmo sentimento acontece com aqueles que nós discriminamos.
Nos despedimos no final do encontro e cada um voltou para
a sua casa.
Dias depois encontrei a mãe daquela menina que não quis
falar e nem comentar nada no encontro de contação de histórias. Ela
agradeceu-me pela ajuda que eu tinha dado para a sua filha ao lembrar a
história “O patinho feio”. É que sua filha,como ela, era estrangeira e a
família mudou residência para o Brasil em função do trabalho do pai.
Contou-me que a menina estava com dificuldades de
adaptação na escola. Havia uma dificuldade em falar corretamente a língua
portuguesa, razão de ser motivo de chacota e risos de parte de algumas colegas
de aula.
A menina, aos se identificar com a personagem patinho
feio, acreditou que a sua rejeição era apenas uma incompreensão de
pessoas que não a conhecia por ser de outra cultura.
Relato essa experiência com o objetivo de destacar o
poder transformador de uma história para resignificar mudanças, perdas e outros
conflitos da alma humana.
Um discurso, por mais eloqüente que possa se apresentar
faculta ser contestado, mas uma história, fantasiosa ou real, induz ao
silêncio da reflexão subjetiva, sempre carregada de descobertas
pessoais.
É
um convite para o sonhar e sonhando, formar o próprio caminho, pontes
para jornada da vida.
Podemos dizer que contar histórias é a mais antiga e,
paradoxalmente, a mais moderna forma de comunicação.
No passado, era o contador de histórias o depositário da
experiência, conhecimento e sabedoria.
Hoje, em tempos de supremacia da imagem (da televisão, do
computador, das coisas prontas), as histórias contadas oferecem um divertimento
que está dentro de cada um, em seus valores subjetivos.
Em tempos passados, o rito familiar possibilitava o clima
intimista na relação entre as gerações nas sessões de contação de histórias.
A
figura do avô ou da avó era símbolo do faz-de-conta, agente de introspecção
imaginativas de crianças e jovens. Via de regra, brincadeiras entre crianças
reproduziam e ampliavam as simbologias dos momentos mágicos extraídos dos
livros.
Os tempos mudaram: a relação intimista entre as gerações
fica prejudicada pelo acelerado dos ritos sociais modernos, dos
“fast-foods” e a nova figura do contador de histórias passa a ser o
monitor de TV ou do computador e também dos “vídeos games”.
As brincadeiras, antes essencialmente coletivas (sem
desperdiçar momentos de introspecção), assumem caráter de um isolamento ou nos
momentos coletivos, reproduzem imagens prontas de uma trama estereotipada.
Numa família da pós-modernidade, o ser humano está
cada vez mais individualista, cada um tem a sua TV no quarto, o seu
computador pessoal, o seu telefone celular, e os membros de uma mesma
família só se encontram em casa nos corredores, nos intervalos da novela
ou do “Big Brother” para esquentar a comida no microonda e voltar
rapidamente ao seu assento diante da TV.
Aliás, sobre a influência da TV, gostaria de reproduzir
um pensamento do escritor uruguaio Eduardo Galeano que diz assim:
“A televisão,
essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a
vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa
poltrona.”
Numa de minhas palestras sobre o livro “Aprendendo com os animais”, ao fazer
referências sobre a simbologia dos animais na TV (cachorro da COFAP, vaquinha
da Nestlé, tigre da Shell, tucano do PSDB e outros), um morador da cidade de
Florianópolis comentou que quando ocorreu o “apagão” na ilha, nunca
a sua família conversou tanto. É que a TV ficou desligada, é claro!
Se
você quiser conhecer uma família que pratica o diálogo, desligue a televisão
que em pouco tempo ela “aparece”.
Em
um mundo sem tempo, torna-se cada vez mais necessário o resgate do instante
mágico da contação de histórias e da leitura.
(Extraído do meu livro Contador de histórias)
(Extraído do meu livro Contador de histórias)
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