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O Holocausto e nós, por Flávio Tavares*

A celebração, dias atrás, em Porto Alegre, em memória do extermínio de judeus pelos nazistas durante os anos do domínio de Hitler na Alemanha e na Europa, leva-me a interrogar sobre a hipocrisia da política e da diplomacia e, mais ainda, sobre o medo que guia o comportamento humano.

Sim, pois de 1933 (quando Hitler subiu ao poder) até 1945 (quando suicidou-se em Berlim), passaram-se 12 anos sem que se falasse abertamente do massacre de judeus e ciganos pelo fato de serem judeus e ciganos. Já em 1942, a aviação anglo-americana bombardeou a Alemanha e numa só noite, por exemplo, incendiou Hamburgo com bombas de fósforo, matando 40 mil civis. Nunca, porém, bombardearam as ferrovias que levavam aos campos de extermínio, localizados (na maioria) junto a cidades alemãs de porte médio. Todos tinham imensas chaminés para cremação de corpos, mas nenhum civil alemão pressentiu o cheiro da morte.

Os documentários que os canais de História exibem até hoje na TV mostram tropas russas, inglesas e norte-americanas (em 1945) levando os constrangidos habitantes locais a conhecerem o horror que ignoravam – milhares de cadáveres insepultos de prisioneiros mortos por inanição ou assassinados em massa e às pressas ao final da guerra.

Desconheciam por nada saber ou por fingir que nada sabiam?

O medo, só o medo erigido como única fonte e único fim do Estado pode explicar que o culto povo alemão tenha sustentado a ditadura de Hitler e tomado o crime aberrante como natural. Foi preciso uma guerra mundial (que envolveu diretamente o Brasil), com toda a loucura das guerras, para pôr fim à demência nazista da “supremacia da raça ariana”, ponto de partida para a matança de 6 milhões de judeus na Europa – todos civis, crianças e mulheres incluídas.

Como grupo, só os judeus recordam o que toda a humanidade deveria rememorar a cada ano, ou a cada dia, para evitar a repetição de horror similar. Estamos ainda sob o impacto do século 20, de suas misérias e proe-zas, utopias e frustrações. No fundo, somos ainda governados pelo século passado – século da penicilina, da bomba atômica e da aids; da lei da relatividade e da poluição ambiental –, mas muitas vezes nos inibimos com o que nos deixou.

No Brasil, silenciamos sobre os crimes cometidos durante a ditadura militar. O golpe de Estado de 1964 foi a mais atroz marca política do século, mas nas escolas militares é apontada como “gesto heroico”. A repetição dessa mentira tem como base a mesma fantasia que, hoje, leva corruptos e corruptores a ocuparem altos postos nos governos. A verdade não chega à proximidade do poder.

Na celebração do Holocausto judaico em Porto Alegre, o cônsul** alemão no Rio Grande do Sul  rendeu homenagem àqueles 6 milhões assassinados há mais de meio século pelo governo de seu país. “Uma atitude de reverência”, lembrou. De fato, reverência à verdade histórica. Ou alguém imaginaria um representante do governo da democrática Alemanha atual defendendo os crimes do governo de Hitler?

No poder ou fora dele, os alemães de hoje não se inibem em distanciar-se do terror do governo alemão de ontem. Entre nós, ao contrário, alguns setores minoritários teimam em aferrar-se ao passado atroz e odioso, sem repudiar os delitos da ditadura.

Para a ditadura nazista, os judeus eram abjetos inimigos a aniquilar só por serem judeus. Aqui, na ditadura surgida em 1964, quem lutasse pela liberdade da democracia era desprezível inimigo a aniquilar.

*Jornalista e escritor
** Cônsul geral no RS e SC, Norbert Kürstgens (nota BrasilAlemanha/Neues)

Fonte:
Zero Hora -  Porto Alegre, 30 01 2010
Site: www.zerohora.com.br 

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