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Da história para o palco

Uma história que conto na peça O Contador de histórias e a árvore dos sapatos.
O ESPELHO sempre foi um objeto no mínimo curioso. Ver a si mesmo. No período de colonização era um dos principais produtos de troca com os índios.
No conto da Branca de Neve e os Sete Anões, dos Irmãos Grimm, diariamente, a rainha perguntava ao seu Espelho Mágico quem era a mulher mais bela do reinado. E ficava diante do espelho cheia de vaidade e autoadmiração.
Na mitologia grega, Narciso, ao ver a sua imagem refletida no espelho da água limpa do lago, de tão entorpecido ao admirar a própria beleza, cai no lago e morre.E o lago chorou.Era de água doce, mas, de tanto chorar, ficou com água salgada. É que o lago contemplava a própria beleza através da retina dos olhos de Narciso.Até o lago era vaidoso, como nós humanos.
 O narcisismo tem o seu nome derivado de Narciso, e ambos derivam da palavra Grega narke, "entorpecido" de onde também vem a palavra narcótico. Assim, para os gregos, Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade para com os outros.
E se pensarmos em nossos  espelhos interiores, que auto-imagem cada pessoa tem de si mesmo?
 Durante quase 800 anos, a Espanha foi dominada pelos árabes muçulmanos. Após a surpresa inicial da invasão da península Ibérica, começou a chamada Reconquista. Os jovens cristãos eram incentivados a participar dos torneios, fortalecendo a coragem e o vigor físico, preparando-se assim para - mais tarde - lutar contra os invasores. Surgiram daí episódios épicos. O mais conhecido, talvez, seja o de El Cid Campeador, que derrotou dezenas de príncipes árabes.
Com a finalidade de incentivar um jovem medroso, que não aceitava participar dos torneios, o pai deu-lhe um espelho dourado. Explicou que era mágico: seu portador jamais seria derrotado em torneios ou mesmo em batalhas. A partir daí, a vida deste jovem modificou-se. Ele venceu todos os torneios, com incrível capacidade de manejar armas. Sua coragem e habilidade tornaram-se, mais tarde, lendárias nos combates.
Passados anos, imaginando que isso não faria mal algum, um companheiro revelou a verdade. O espelho não era mágico, era um espelho comum. A valentia era pessoal. Imediatamente a insegurança voltou e o guerreiro não mais participou de torneios e combates, recolhendo-se a uma vida sem garra e sem sentido.
Cada um de nós é portador de uma auto-imagem. Isso significa a maneira como nos vemos. Uma auto-imagem positiva desencadeia grande dinamismo, enquanto uma auto-imagem fraca faz com que seu portador se esconda, cheio de medos. E porque não acredita em si mesmo, acaba fracassando. A auto-imagem é formada nos primeiros anos de vida. Esses “comandos iniciais” que se originam a partir da opinião dos pais, familiares e mestres, tendem a se perpetuar. Daí a importância de elogiar e valorizar positivamente qualquer progresso no crescimento pessoal das crianças e filhos.
É claro que existe a possibilidade de reação. A pessoa, num momento qualquer, pode tomar uma decisão e empunhar as rédeas da própria vida. Em qualquer etapa da vida podemos dizer: de hoje em diante será diferente. O medo, na medida certa, é saudável e nos ajuda na sobrevivência diante dos perigos.
Mas nós não dependemos de coisas mágicas. A autoconfiança, o valor, a magia estão dentro de nós. Não é o espelho que nos dá certeza. É a maneira como olhamos a figura que está no espelho. Nem sempre percebemos nossa real dimensão. A criatura humana é demasiadamente grande para bastar a si mesma. Deus nos revela a nossa verdadeira grandeza. Existe uma dimensão mágica e real em nossa vida: a fé. A certeza de um Deus que nos ama, que revela sua ternura na misericórdia, que caminha conosco, nos possibilita enfrentar todas as batalhas da vida. De resto, não é só a vitória que tem sabor. Nossa realização está na luta. Combater o bom combate tem todo o significado e o sabor de vitória. É isso o que nos garante o espelho mágico que está dentro de nós.
 Bom lembrar dos versos de Miltom Nascimento, na música Caçador de mim: Nada a temer senão o correr da luta!

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